Por que imaginei um encontro entre Gershwin e Jobim?
Paulo Moura
Programa do SESC São Paulo
 
 

É que as músicas dos dois são lindas, é um tremendo prazer tocar, têm uma fluência harmônica sofisticadíssima e ainda permitem improvisações maravilhosas... Esta é a razão verdadeira! Mas é algo que parece não bastar como justificativa em abertura de catálogo, pelo menos para aqueles que não são exclusivamente músicos. Mas não é difícil encontrar razões mais elaboradas, mais eruditas.

A música popular brasileira e a americana são as mais fecundas e expressivas do nosso tempo. E nelas, os maiores melodistas, os mais arrebatadores compositores foram Gershwin e Jobim. Cada um em sua linguagem própria promovendo uma leitura particular de suas origens e culturas.

A civilização musical européia é uma marca nítida em ambos. Jobim, com o piano de tradição francesa, depois impregnado de Villa-Lobos; Gershwin com suas linhagens russas orientais, fortemente judaicas.
Entre os dois, outro traço comum: a retradução do ritmo africano, negro.

Um namorou o jazz, sendo americano; o outro namorou o jazz também, mas, sendo brasileiro, inventou a bossa nova. Como se a cultura européia de ambos tivesse sido colonizada pelo forte desenho e estrutura rítmica do continente africano. Cinqüenta anos separam a morte de Gershwin, da invenção jobiniana, mas a africanidade os reuniu. São brancos de alma negra.

Sendo eu de origem africana, nunca tive dificuldade de entender o jazz, sua sensibilidade, sua expressividade blue. Mas, tive dificuldade em ser aceito pela bossa nova. E por isso, sempre tive com ela uma ligação ambivalente, admiração e afastamento. Como uma criação da zona sul do Rio, branca e estilizada, manteve em seus grupos apenas a presença de uma bateria quase estilizada, excluindo ritmos e artistas negros de suas formações. Os instrumentos percussivos, referência ao samba, perderam a vez. Nada de pandeiros, tambores, ganzás... nada que lembrasse a mãe África. Nem mesmo pela cor de seus instrumentistas de sopro, como eu.

Por isso tem um doce sabor de ironia a minha paixão por Gershwin e Jobim. Tão branquinhos, e tão amarrados no sabor negro.
Refiz o nó pelo avesso: agora é um músico de origem negra que os invade, os retoma, os explora. Uma inversão de tendência, degustação passo a passo, compasso a compasso. A percussão africana transforma-se em vibrafone. O violino judaico vai sambar em métricas brasileiras. Não será o jazz que influencia o samba - é a bossa nova brasileira que vai reler o jazz.

Vamos fazer a Rhapsody com os sabores da bossa, novíssima, porque negra de alma brasileira.

Halina Grynberg a partir de entrevista com Paulo Moura