De Paulo Moura para Pixinguinha
Paulo Moura e Halina Grynberg
O Conselho
 
 

A eternidade de Pixinguinha faz 100 anos!
Há um século, com Pixinguinha, nascia o som da alma brasileira.
Dos seus choros, valsas, polcas e maxixes, em melodias e seqüências harmônicas belíssimas, expande-se uma sensibilidade que, a partir dele, é a nossa.

Seus choros são peças instrumentais irretocáveis. E foram todos escritos para flauta solo, com pouquíssimas indicações de harmonia para violões e cavaquinho. Alguns, como Ainda me recordo, são definidos num único pentagrama, onde apenas a melodia é apresentada. Quando há indicação dos acordes, ela é feita de maneira rudimentar, mas expressiva para os violonistas da época. Hoje são de difícil entendimento, porque representam um código de época que caiu em desuso. Permanecem, no entanto, intactas todas as evidências de um requintado contraponto instintivo. E, numa escrita que parece ter sido feita como anotações para si mesmo, estas composições destilam uma rara sofisticação.

Retorno a Pixinguinha, num reencontro comigo mesmo.
Conheci-o no final dos anos quarenta na Rádio Tupi. Lá estava ele no conjunto de Benedito Lacerda. E já havia trocado a flauta pelo sax tenor. Nunca compreendi porquê. Mas foi essa mudança que permitiu a Pixinguinha aprimorar a forma do contra-ponto popular desenhando-se em oposição à meio-dia. Para a região grave do sax tenor, para o sopro, ele transpôs o contracanto do violão de sete cordas. E o fez num contraste marcante de timbres com o agudo da flauta, numa sonoridade que permanece sendo essencialmente sua.

Mais tarde, no início dos anos cinqüenta, tocamos juntos nos bailes de subúrbio.
Fazíamos parte da orquestra do Pará (que, aliás, tocava tão mal o sax alto que nem ousava tocar na sua própria orquestra), um homem cativante, morador da Lapa, onde arregimentava os seus músicos - e entre eles eu, que fazia o primeiro sax. No entanto, era o bebop, gênero instrumental em moda na época, que mais me interessava naquela ocasião, justamente porque ali o instrumento mais destacado era o sax alto. E vejam só, há pequenos detalhes curiosos em um grande gênio. Pixinguinha não era especializado na improvisação jazzística e por isso, no decorrer do baile, abria mão da parte do solista para um outro saxofonista, e fazia, singelamente, apenas o quarto saxofone. E aguardava. Esperava pelos intervalos da orquestra para tocar o que sabia fazer como ninguém: os choros. Era quando eu, ansiosamente, aproveitava para trocar de instrumento e tocar na clarineta, com ele, alguns desses choros - os mesmos que havia aprendido com meu pai. Pixinguinha foi me revelando a importância da verticalidade na interpretação do choro, esta maneira de tocar em grupo que dialoga com o contracanto, e a sobriedade precisa na variação melódica improvisada.

Imagino, agora, que ele estava nesta orquestra não pela remuneração, mas sim pelo prazer de tocar... Era o prazer de fazer os choros nos intervalos do baile o que lhe importava.
Recriar os Oito Batutas - é estar presente a sua festa de 100 anos, louvando e retomando parte desta tradição. É reaproximar a música de Pixinguinha com o samba, como fazíamos juntos nos bailes de então.

O meu choro não é tocado de maneira tímida e intimista, no aconchego das mesas de bar dos subúrbios. Prefiro o Pixinguinha colorido pelo matiz africano do samba. Pixinguinha alegre, dançante, com seus choros "aparta-briga", "mela-cueca", dividindo com os outros, numa brincadeira marota, o tema e a festa. É o sabor da festa que gostaria de reencontrar: a graça, a ingenuidade, a pureza, a generosidade da alma brasileira que está para sempre na sua música.